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Quer com camalão ou sem camalão? Com camalão é mais calo!

 
Não é segredo para ninguém que Salvador está coalhada de chineses, sobretudo o centro da cidade. Não é segredo também que este é um fenômeno mundial e, agora mais do que nunca, nada faz mais sentido do que a antropofagia cultural defendida pelos modernistas na Semana de Arte Moderna de 1922, um marco histórico que mudou os rumos culturais do país de uma vez por todas. Tudo bem, eu aceito isso, não sou xenófobo, mas acho que chegamos a um ponto inusitado. 

Outro dia eu resolvi sair de casa para comer alguma coisa na rua, adoro comer tosqueira de lanchonete: empada, pãozinho, sonho – o sonho da Bahia é imbatível!— mas nada supera o acarajé para um baiano nascido no Recôncavo e radicado em Salvador, como eu. A arte de comê-lo está cercada de uma verdadeira ritualística quase litúrgica. O Recôncavo é a área que compreende as cidades que margeiam a Baía de Todos os Santos.
 
Há quem coma o bolinho a qualquer hora, mas baiano que é baiano só o come no fim do dia, perto do pôr do sol e, claro, vem sempre acompanhado de uma coca-cola. 
 

Arrumei-me, eram quase 17h30, lá fui eu descendo aqui a ladeira do Shopping Piedade todo perfumado, cantarolando Ginga e Expressão— uma música da antiga Banda Mel imortalizada na voz de Márcia Short— e todo perfumado de alfazema rumo à Central do Acarajé na Rua Carlos Gomes comer meu bendito acarajé.


De antemão eu sei e me penitencio pelo fato de não ter procurado uma baiana daquelas do tipo credibilidade a toda prova: negras, gordas, adornadas de penduricalhos reluzentes e armadas com colheres de pau gigantescas que fariam um estrago muito grande na cabeça de qualquer gatuno desavisado. Eu precisava comprar outra coisa qualquer lá pelas bandas do Dois de Julho e resolvi comer por lá mesmo.
 
Para quem não conhece e nunca viveu à sombra da Soterópolis, o bairro Dois de Julho e a Carlos Gomes são localidades que se cruzam. Pois bem, quando cheguei à Central do Acarajé, que já não se chama mais dessa forma, eu fiquei um pouco
intrigado. “O que será que estas lanternas chinesas e estes dragões estão fazendo aqui?”, refleti incrédulo, mas entrei assim mesmo. 


Aproximei-me do balcão expositor e não havia ninguém, mas em menos de cinco segundos me aparece uma chinesa para me despachar. “O que o senhor quer?”, perguntou-me a criatura com um sotaque engraçadíssimo e eu, ainda meio anestesiado com aqueles dragões à sombra de um coqueiro respondi rápido: quero um acarajé! “Entón paga na caixa plimelo, pega depois”, eu quase perguntei o que ela estava falando, mas ela se fez entendida logo que sinalizou com dedo indicador em riste para o caixa. Os chineses conseguem falar mais alto que os baianos e sempre sacodem a cabeça quando conversam com seu interlocutor, parecem-me lagartixas de muro.
 
“O sinhô quer acalajé com camalão ou sem camalão?”Quase me mijei de rir quando o outro chinês operador do caixa indagou-me sobre minha preferência acerca do famoso quitute baiano. “Com camarão!”, respondi. 
 
Para minha surpresa eu não sei o que se passou na cabeça daquele chinês que me respondeu prontamente que “com camalão é mais calo”. Será que ele pensou que não podia pagar um pouco mais pelos camarões?
 
Peguei o acarajé, que faço questão de dizer que não o comi no prato plástico, cortadinho como se convencionou servir. Comi-o à mão no papel de embrulho mesmo. Como disse no início, comer o acarajé é, pelo menos para mim, uma espécie de ritual e degustá-lo ,em pratinho plástico manuseando garfinho, é um sacrilégio imperdoável. Como baiano é um bicho estranho mesmo, talvez pense que comer no pratinho é mais civilizado.
 
Sentir o cheiro da massa frita de feijão fradinho no azeite de dendê mesclado ao aroma que emana do coentro e dos tomates picados ,junto às narinas, é imprescindível para mim. Sou totalmente sinestésico e necessito irmanar todos os sentidos no momento de saciar a fome e o papel de embrulho dá aquele toque especial tanto olfativo quanto visual. 
 
Enquanto desfrutava da minha comida refletia sobre os benefícios e malefícios deste mundo globalizado, lembrei-me imediatamente da antropofagia cultural dos modernistas, da aculturação dos indígenas na Amazônia, do apogeu e queda de culturas e quase estava anuindo e tentando convencer-me que as coisas eram assim mesmo e que nada podia ser feito. Não com o meu acarajé! Pode parecer um absurdo, mas senti-me ofendido em ve
r tantos dragões e lanternas chinesas fazendo guarda ao meu petisco predileto.


O acarajé não é só um produto alimentício, é sim símbolo de uma cultura que forjou a identidade do meu estado, da minha região, da minha cidade. Acarajé em Iorubá quer dizer literalmente comer o bolo do acará, e este último pode ser traduzido como bola de fogo. Ou seja, trocando em miúdos o sentido é: comer a bola de fogo. é o verbo comer. 
 

Não consigo imaginar nem conceber outro momento em que o baiano é mais baiano do que este. O momento em que bola de fogo, encharcada pelo brilho do azeite de dendê, qual raios que emanam da adaga de Iansã, cobram do homem e da mulher da Bahia, o seu estômago, seu prazer e seu espírito. 

Mito, mitologia e realidade se fundem aí e o resultado é a amálgama preciosa que é a cultura da minha terra. 
Reminiscências inconscientes das terras de Ibadã, Oyó e Ilê-ifé. Não aceito que nenhum dragão acabe com isso!
 

O acará tem sua origem como oferenda a Yansã, deusa dos raios e tempestades no panteão das divindades iorubaianas, portanto, ainda que se rechace o fato, toda vez que o comemos, mesmo ignorando o seu significado original, é como se houvéssemos saudado à Rainha dos Raios.

 
Posso até imaginar a cara daquela prole apedeuta comendo o “Acarajé de Cristo” em frente ao suntuoso palácio da Igreja Universal do Reino de Deus, na Avenida Antonio Carlos Magalhães, caso conhecessem sua origem mítico-religiosa. Êparrei Oyá!
 

Para isso me serviram as aulas de cultura nigeriana e língua iroubá no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, há longínquos dez anos. Risos.

Mas, continuando a estória…

Comecei a achar que a massa do bolinho estava um pouco estranha. Não sei o que houve, mas não gostei do sabor. Afinal de contas, era um acarajé com DNA chinês! Fiquei temeroso de encontrar um celular de três chips dentro dele ou me engasgar com chumaços do cabelo daquelas Barbies mandarins horríveis que mais parecem bonecas de sexo em miniatura. 

Refleti um pouco,tomei minha coca-cola e fui acordado dessas reflexões loucas quando meus olhos caíram sobre um vendedor chinês que ,do lado de fora da loja, anunciava aos gritos à venda de jacas frescas. Quer uma jaca fleguês?